No papel de anfitrião virtual, o presidente americano Joe Biden recepcionará 40 chefes de Estado, entre eles o mandatário brasileiro Jair Bolsonaro, na chamada Cúpula de Líderes sobre o clima, nos próximos dias 22 e 23 de abril.
O evento é visto como uma oportunidade central para que Biden assuma o papel de protagonismo político global em questões climáticas, agenda que ele reiterou ser uma prioridade de sua gestão durante toda a campanha eleitoral de 2018, da qual saiu vitorioso.
Pela primeira vez na história, Biden criou na administração federal dos EUA o posto de Enviado Especial Climático, que conferiu a John Kerry a missão de viabilizar a pauta verde dos democratas doméstica e internacionalmente.
Os EUA estão de volta?
“Os EUA estão de volta”, lema do atual governo americano, precisará ser provado nas ações do líder da Casa Branca. Nos últimos quatro anos, os americanos haviam se retirado de sucessivos espaços de debate multilaterais e mesas de negociações conjuntas entre líderes estrangeiros. Foi assim em relação ao Acordo Climático de Paris, foi assim com a Organização Mundial da Saúde (OMS), foi assim no Acordo Nuclear com o Irã.
A guinada na política externa americana operada pelo ex-presidente Donald Trump preconizou a aproximação com expoentes da direita populista e conservadora mundial e concentrou os esforços – ou rompimentos – diplomáticos em assuntos centrais para o eleitorado republicano, como a questão das disputas comerciais com a China ou as restrições à entrada de migrantes e refugiados ao país. O mote da administração era América – e americanos – primeiro, e isso se traduziu em uma ausência dos EUA de assuntos de governança global.
Evento com 40 chefes de Estado será palco inaugural de política ambiental global do presidente americano. Em meio à pressão e tensão, acordo bilateral entre Brasil e EUA ainda é dúvida.
Agora, a gestão democrata tenta restabelecer o papel que os EUA se atribuíram de farol dos valores econômicos, democráticos e morais do Ocidente. “Vamos reparar as nossas alianças para liderar não só pelo exemplo da força mas pela força do exemplo”, anunciou Biden, em seu discurso de posse, em 20 de janeiro.
Naquele mesmo dia, ele assinou a ordem executiva que recolocava os Estados Unidos no Acordo Climático de Paris, do qual o ex-presidente Trump havia retirado os americanos. E apenas sete dias mais tarde anunciou que os EUA não apenas voltavam a se sentar à mesa de negociações climáticas como seriam eles mesmos os responsáveis por colocar o assunto à mesa na Cúpula de Líderes que acontecerá dos próximos dias.
O evento servirá para que os americanos reafirmem compromissos que ignoraram nos últimos anos de tentar impedir que o planeta se aqueça acima de 1,5 grau Celsius no futuro. O governo Biden pretende anunciar, diante dos chefes de Estado de 17 economias que juntas respondem por 80% das emissões de gases do efeito estufa e por 4/5 do PIB global, metas mais ambiciosas de redução das emissões de CO2 americanas até 2030.
“Em seu convite, o presidente exorta os líderes a usarem a Cúpula como uma oportunidade para delinear como seus países também contribuirão para uma ambição climática mais forte”, afirma o comunicado da Casa Branca sobre o lançamento da Cúpula.
“Depois de se ausentarem do debate, agora os EUA querem mostrar serviço e querem que haja um grande número de acordos com os países da Cúpula para mostrar que retornam à arena com peso”, avalia Tasso Azevedo, Coordenador do Sistema de Estimativa de Emissões de Gases de Efeito Estufa do Observatório do Clima. A Cúpula de Líderes de agora é vista também como um passo importante para que as grandes potências mundiais se comprometam com planos mais ambiciosos na 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática, que acontecerá em Novembro, em Glasgow, na Inglaterra.
O Brasil como trunfo
É nesse contexto que o Brasil surge como uma oportunidade para o governo Biden mostrar a consistência de sua agenda e a capacidade de persuasão de seus argumentos.
Bolsonaro se elegeu presidente com as propostas de reduzir multas ambientais, interromper as demarcações de terras indígenas e promover os interesses de produtores rurais. Os dois primeiros anos de seu mandato foram marcados por sucessivas altas no desmatamento. A taxa de perda florestal saltou de 7,5 mil km2, em 2018, para 10,1 mil km2 e 11,1 mil km2 em 2019 e 2020, sucessivamente. Foram os maiores valores desde 2008.
Ainda durante a campanha presidencial de 2020, o democrata Biden afirmou que gostaria de liderar o esforço de criação de um fundo internacional de US$ 20 bilhões oferecido ao Brasil para manter a Amazônia conservada. Ao citar o Brasil, Biden mobilizava no imaginário do eleitor americano as imagens de queimadas na floresta que correram o mundo em 2019, no primeiro ano da gestão de Bolsonaro.
“É claro que há toda uma simbologia em negociar com o Brasil, que tem sido identificado globalmente como refratário à preservação ambiental. Seria um trunfo do governo Biden obter um compromisso com Bolsonaro, um ganho não só internacional como também com o eleitorado americano democrata, que se preocupa bastante com o assunto”, afirmou à BBC News Brasil, em condição de anonimato, um diplomata brasileiro que acompanha as negociações entre Brasil e EUA no tema.
As primeiras aproximações entre a equipe de John Kerry e as autoridades brasileiras, capitaneadas pelo ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles e pelo então chanceler Ernesto Araújo, pareceram produzir impressões positivas de parte a parte. Do lado americano, os negociadores pareceram surpresos com a receptividade do Brasil em tratar do assunto do meio ambiente como uma “nova prioridade” desde que fosse incluída na negociação uma contrapartida financeira pelos serviços florestais do país.
Já entre diplomatas brasileiros, chamou a atenção o tom “humilde” e “flexível” de Kerry e de sua equipe à frente das propostas para o Brasil. Em meados de abril, à revista britânica The Economist, Kerry afirmou que não lhe cabia “ditar” o que é o Brasil e que se trata de “um governo que se sentiu prejudicado pela forma como foi abordado até o momento”. De acordo com fontes na diplomacia americana, a preocupação de Kerry era não irritar a gestão Bolsonaro, o que poderia levar a uma interrupção completa das negociações caras aos americanos.
Pressão na negociação
Mas, nas últimas semanas, o governo americano aumentou o grau de pressão para que o Brasil se comprometa com metas claras de combate ao desmatamento e condicionou qualquer repasse significativo de recursos ao país à apresentação de resultados. Exatamente o oposto do que o ministro Salles afirmou publicamente desejar. Em entrevista recente ao jornal O Estado de S. Paulo, o chefe da pasta de Meio Ambiente afirmou esperar por pagamentos antecipados da ordem de US$ 1 bilhão por ano para que o Brasil pudesse se comprometer em reduzir entre 30% e 40% a devastação da Amazônia. Sem o recurso de antemão, Salles afirmou que o país não poderia oferecer qualquer meta.
Diante da barganha, o Departamento de Estado americano fez chegar ao Itamaraty que não existe a possibilidade de repasses sem resultados. E que do sucesso da negociação climática dependeria também o futuro de outras pautas caras ao Brasil, como o avanço em acordos comerciais bilaterais com os EUA e a manutenção do endosso americano à entrada do país na OCDE. Em caráter reservado, um representante de entidade comercial dos dois países, que participou de reuniões com as diplomacias de EUA e Brasil, afirmou que “os americanos deixaram muito claro que não vão comprar terreno na Lua”.
Ao mesmo tempo, o governo americano passou a ser cada vez mais pressionado por grupos indígenas, integrantes da sociedade civil e até mesmo governadores e parlamentares brasileiros a ampliar o escopo das conversas. Todos eles se queixavam de que as propostas levadas por Salles e Araújo a Kerry não representavam os interesses mais amplos da sociedade brasileira, já que não houve processo de escuta pública do governo federal a esses grupos.
Há um mês, em carta revelada pela BBC News Brasil, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) pediu ao presidente americano Joe Biden e ao Enviado Climático Kerry um “canal direto” de comunicação com o governo dos EUA sobre assuntos ligados à Amazônia brasileira. Na última terça-feira (13/04), tanto o embaixador dos EUA no Brasil, Todd Chapman, quanto Jonathan Pershing, um dos assessores de Kerry, participaram de uma reunião com as lideranças indígenas.
“Eles se mostraram preocupados com o que relatamos e interessados em uma mudança da política ambiental do governo Bolsonaro. Eles sabem com quem estão negociando. E nós sabemos da capacidade deles de pressionar e estamos esperançosos porque foi uma abertura de diálogo inédita”, afirmou à BBC News Brasil Dinaman Tuxá, coordenador da APIB.
“A conversa dos representantes americanos com os indígenas brasileiros foi mais um sinal da gestão Biden de que o governo brasileiro precisará oferecer compromissos concretos e consistentes para que haja um anúncio bilateral de compromisso no dia 22.“
Dentro do Itamaraty há um claro entendimento de que, sem isso, o país não vai abocanhar recursos americanos. A sinalização da meta possível, no entanto, é fraca. Nesta quarta (14/04), o vice-presidente da República Hamilton Mourão anunciou em Diário Oficial que o país trabalha com a expectativa de fechar a gestão Bolsonaro com um desmatamento em torno de 8,7 mil km2 por ano. É certamente uma redução em relação aos dois primeiros anos da administração, mas é também um valor mais de 15% acima do patamar obtido no ano anterior à posse de Bolsonaro. Mesmo entre negociadores brasileiros há ceticismo de que esse número anime os americanos a abrirem o bolso.
Se um acordo bilateral falhar, resta ainda a possibilidade de uma saída multilateral: a proposta da criação de um fundo em torno de US$ 10 bilhões que se destinaria aos países da América do Sul para a conservação dos biomas tropicais da área. Assim, os EUA poderiam usar o peso dos vizinhos brasileiros para aumentar a pressão sobre as ações ambientais de Bolsonaro.
Na última semana, o governo Biden enviou pela primeira vez um emissário de alto nível à região. O diretor sênior para o Hemisfério Ocidental no Conselho de Segurança Nacional, Juan Gonzalez, embarcou para uma visita a Colômbia, Argentina e Uruguai, para discutir, entre outros temas, a crise climática. O Brasil não estava no itinerário de Gonzalez.