Sete meses sem respirar direito: pacientes relatam deformações em alectomia, procedimento para afinar o nariz

Por Thaís Matos

Alectomia, procedimento para afinar nariz, pode levar a problemas respiratórios
Alectomia, procedimento para afinar nariz, pode levar a problemas respiratórios

“Desenvolvi algumas crises de pânico. Acordava à noite assustada, com a sensação de que me faltava ar.” É assim que descreve a nutricionista Ludmilla Delfino os meses após uma alectomia, intervenção estética não tão conhecida como a harmonização facial, mas que também tem seu rastro de erros e processos judiciais.

Ludmilla passou sete meses respirando pela boca e passando por constantes inflamações na garganta. Ela conta que perdeu a vontade de sair de casa e até parou de almoçar com seus colegas de trabalho para que não a vissem sem máscara.

O objetivo dessa operação é diminuir as asas nasais para afinar o nariz. A técnica é, teoricamente, simples: com uma anestesia local, o profissional corta um pedaço dessas estruturas que circundam as narinas e fecha com pontos.

Intervenção tem sido feita por profissionais que não têm permissão para realizar esta cirurgia, como dentistas e biomédicos, e sem análise da estrutura nasal do paciente ou exame prévio.

Os resultados desses procedimentos apressados e mal feitos são narizes muitas vezes mutilados, com narinas assimétricas, pacientes que desenvolvem problemas respiratórios ou cicatrizes permanentes e sofrem com dores que não passam.

A alectomia tem sido vista como a solução “simples e milagrosa” por pessoas que querem afinar narizes largos, encontram anúncios com “antes e depois” no Instagram e depois aceitam serviços de dentistas, biomédicos e outros profissionais que não têm permissão para isso.

Qualquer profissional que não seja médico é proibido de realizar cirurgias no nariz. Dentistas podem fazer algumas cirurgias na face, mas o Conselho Federal de Odontologia proibiu expressamente a realização de alectomias por dentistas por meio da Resolução 230, de 14 de agosto de 2020.

O procedimento nessas circunstâncias muitas vezes é feito sem análise da estrutura nasal do paciente ou exame prévio. Duram por volta de duas horas e o preço vai de R$ 800 a R$ 5 mil, em média – uma rinoplastia completa, que envolve um trabalho mais detalhado na estrutura do nariz, feito por um médico especializado, custa a partir de R$ 10 mil.

Resultados desastrosos

E casos assim têm crescido na quarentena.

Cirurgião plástico especializado em rinoplastia, André Fortunato diz que a procura de pacientes que precisam arrumar resultados “desastrosos” de alectomias já é, nestes cinco primeiros meses do ano, três vezes maior do que o registrado no ano passado inteiro em seu consultório.

O otorrinolaringologista e especialista em rinoplastia Daniel Curi também relata que o atendimento a esses pacientes aumentou desde o início da pandemia. E que, em alguns casos, não é possível reparar os danos.

Além da nutricionista Ludmila Delfino, a fisioterapeuta Daniele Weber e a técnica em cozinha Denize Corrêa relatam problemas com a alectomia e a mesma justificativa na busca pelo procedimento: vontade de melhorar a autoestima. Quando as grandes vontades encontraram anúncios “perfeitos”, os pesadelos começaram na vida das três. (Leia os depoimentos no final da reportagem)

Como funciona a alectomia

“Na maioria das vezes, quando é feita só uma alectomia, é possível realizar apenas com anestesia local. São feitos alguns cortes na região das asas nasais, podendo até estender um pouco às laterais do nariz para fazer o fechamento das asas. É basicamente isso”, explica Fortunato.

O problema é que, na maior parte das vezes, apenas o corte desse pedaço do nariz não é suficiente para mantê-lo funcionando. O cirurgião explica que, dependendo da estrutura nasal do paciente ou da quantidade de pele que precise ser tirada, o nariz pode não se sustentar.

 — Foto: Daniel Ivanaskas/G1
Foto: Daniel Ivanaskas

“Em alguns casos, uma retirada inadvertida ou em excesso da asa nasal pode causar uma fragilidade das válvulas nasais e o fechamento das narinas. Se o exame físico mostrar que o paciente tem problema na estrutura das asas, ele não pode fazer só a alectomia”, explica Fortunato.

“Na lateral do nariz, têm as cartilagens, uma região que deve ter uma sustentação para permitir a passagem do ar quando a pessoa faz inspiração. Então, quando a gente viola essa estrutura toda e tira cartilagem de maneira exagerada, a gente vai perder a sustentação e aí a pessoa não vai ter uma inspiração boa, a asa vai colabar, colar no septo”, explica Curi.

A nutricionista Ludmila Delfino enfrentou esse problema por sete meses. A profissional com quem ela fez a alectomia cortou seu nariz por três vezes durante a cirurgia. Assim, ela ficou com as narinas completamente fechadas nas primeiras semanas. Depois disso, seu nariz grudava no septo quando ela inspirava e a impedia de fazer qualquer esforço ou atividade física e até dormir direito.

A “solução” para cada nariz é diferente. Em muitos casos, o corte da asa sequer é necessário para afinar a base.

“A gente pode fazer a alectomia dentro da rinoplastia, mas é muito raro ter indicação de ser feita de maneira isolada. Então a gente tem que explicar para o paciente que o que leva à diminuição da largura do nariz pode ser projetá-lo [deixá-lo mais elevado] e estruturar a ponta. Na medida em que a gente projeta, ele por si só vai tracionar e puxar a asa, deixando o nariz mais estreito”, explica Curi.

A reportagem entrou em contato com o Conselho Federal de Odontologia para levantar o número de profissionais investigados pela prática, mas o conselho informou que “não possui esses dados”. Os conselhos regionais procurados não responderam até a publicação da reportagem.

É reversível?

Alguns dentistas extrapolam o limite das asas nasais e mexem também em outras estruturas do nariz, como a ponta, o dorso nasal e a columela (tecido que separa as narinas), e comprometem ainda mais seu funcionamento.

Dependendo do dano causado, é possível reparar o nariz por meio de cirurgias. Há casos em que são necessárias várias intervenções para recuperar a estrutura, diz Fortunato. Em casos mais complicados, os médicos costumam usar enxertos de outras partes do corpo, como cartilagem de costela ou orelha.

“Voltar a original a gente não consegue. Aquele fragmento de asa, cartilagem ou pele que foi tirado vai para o lixo. Então a gente faz enxerto com pele de orelha, pedaço de cartilagem para estruturar. Obviamente, com cicatrizes ruins, o funcionamento também não é muito bom. A correção disso é sempre muito difícil, por isso é bem triste quando o paciente já chega sequelado”, diz Curi.

Atividade irregular deve ser denunciada

Apesar da proibição do procedimento pelo Conselho Federal de Odontologia, muitos profissionais usam a tática de substituir alectomia por termos como slim nose, rinomodelação permanente, nose lifting e nose shut. São alguns dos nome-fantasia vendidos por consultórios como técnicas simples e baratas.

Os conselhos regionais são responsáveis por fiscalizar o exercício dos dentistas e garantir que eles cumpram a resolução. Profissionais que realizam essas cirurgias podem ser denunciados nos conselhos de cada estado.

Leia o relato de três mulheres que tiveram problemas com alectomia:

‘Precisei entrar com medicamentos para dormir’

A nutricionista Ludmila Delfino ficou cinco meses sem respirar pelo nariz após realizar alectomia — Foto: Arquivo pessoal/Ludmila Delfino
A nutricionista Ludmila Delfino ficou cinco meses sem respirar pelo nariz após realizar alectomia — Foto: Arquivo pessoal/Ludmila Delfino

Ludmilla Delfino tem 30 anos e é nutricionista. Incomodada com a largura do nariz, mas receosa de enfrentar uma cirurgia complexa, decidiu fazer a alectomia em junho do ano passado com uma dentista. “Ela me vendeu um procedimento muito simples, que seria feito rapidamente e me daria uma vida normal em 15 dias”, conta.

“No espaço de uma semana, eu estava deitada em uma maca com uma profissional que não era médica em um consultório. Ela começou fazendo a ressecção de um lado do nariz, fez a sutura da lateral e fechou. E depois ela desfez o que havia feito, falou ‘não tá bom’, abriu e cortou mais um pedaço. Aí ela abriu de novo e cortou mais um pedaço. Isso aconteceu três vezes.”

“Quando ela terminou as laterais, ela fez dois cortes na ponta do meu nariz e começou a entrelaçar vários fios. Eu não tinha ideia que ela iria fazer aquilo, em momento algum ela havia mencionado que ela passaria fios na minha cartilagem”, narra Ludmila.

Ludmila Delfino ficou com as narinas fechadas após alectomia — Foto: Arquivo pessoal/Ludmila Delfino
Ludmila Delfino ficou com as narinas fechadas após alectomia — Foto: Arquivo pessoal/Ludmila Delfino

Ludmila percebeu que o nariz estava muito fechado assim que levantou a maca, mas a recomendação dada pela profissional era de fazer massagem com os dedos para abrir as narinas. “Naquele momento, não passava nem cotonete”, conta. Além disso, a cicatrização não ocorreu bem e ela ficou com as marcas das linhas nas laterais do nariz.

“Com o passar das semanas, eu comecei a perceber que a parte funcional do meu nariz também havia sido destruída Nessa época, eu só respirava pela boca porque, no momento da inspiração, as minhas narinas, elas colabavam, elas fechavam completamente.”

As consequências também foram emocionais. “Precisei entrar com medicamentos para dormir e me tratar com antidepressivo.”

Foram sete meses respirando pela boca e constantes inflamações na garganta. O constrangimento levou a nutricionista a perder a vontade de sair de casa e almoçar no trabalho.

Em janeiro, realizou uma rinoplastia com o médico André Fortunato, que conseguiu refazer a estrutura lateral do nariz com enxerto de costela. “Fui para a cirurgia certa de que só precisava voltar a respirar, era só isso que eu pedia a Deus. Quando terminou e me mostraram uma foto do meu nariz, eu não acreditava. Puxava todo o ar que conseguia e dizia para as enfermeiras: ‘Eu tô respirando’.”

Ludmila gastou R$ 3 mil para fazer a alectomia e mais de R$ 30 mil com a rinoplastia reparadora de alta complexidade, mas está aliviada por voltar a respirar. “E hoje eu sempre falo: não existe beleza sem saúde.”

‘Ainda não está 100%’

Daniele Weber tem 35 anos, é fisioterapeuta e mora na Alemanha. Descobriu o trabalho de alectomia feito por uma dentista no Instagram e marcou a cirurgia à distância. Quando veio ao Brasil em fevereiro, realizou o procedimento.

O pós-operatório foi terrível: com dores que ainda persistem e incapacidade de sorrir ou abrir a boca, ela buscou ajuda, mas não obteve retorno da profissional. “Eu fiz slim nose. Sinto dores horríveis na parte de baixo do nariz até hoje e não consigo fazer coisas básicas como assoar ou inspirar porque dói muito. Meu sorriso está começando a destravar, mas ainda não está 100%”, conta.

Daniele não foi a única a sofrer com a médica. Segundo ela, há grupos em redes sociais formados apenas por ex-pacientes da dentista que tiveram problemas com procedimentos. No entanto, as pacientes têm medo de denunciá-la e sofrer algum tipo de perseguição.

“Chamei a doutora várias vezes e não tive pós[consulta] com ela de jeito nenhum. Ela está fazendo mal a muitas meninas. Elas trabalham, juntam uma grana aqui, outra ali para no final acontecer isso. Ela é cheia de problemas e tem só dois processos na justiça. A gente precisa correr atrás dos nossos direitos.”

“Uma advogada dela me chamou para fazer acordo e me devolver o dinheiro, mas minha autoestima e as dores não vão voltar ao normal”, desabafa.

‘Achei estranho assim que saí do consultório

Denize Corrêa ficou com cicatriz e dores após alectomia — Foto: Arquivo pessoal/Denize Corrêa
Denize Corrêa ficou com cicatriz e dores após alectomia — Foto: Arquivo pessoal/Denize Corrêa

Denize tem 26 anos e mora em São Luís, no Maranhão. Ela encontrou o anúncio da alectomia no perfil de uma dentista no Instagram e passou a acompanhar os resultados mostrados.

Na primeira consulta, a dentista já realizou sua cirurgia. “Naquele momento, eu queria alguma coisa para salvar minha autoestima. Vi a alectomia e achei que era isso que eu precisava, simplesmente. Conversei com a doutora, a gente se encontrou muito rapidamente e eu já fui direto para a mesa cirúrgica”, conta.

“Eu já achei estranho assim que saí do consultório. Eu estava sentindo muita dor e achava que era algo mais simples, pelo que ela falava no Instagram. Eu não estava conseguindo falar, não mexia o rosto e sentia os pontos doloridos. Olhei de cima para baixo e achei que tinha ficado um lado maior que o outro. Falei para ela, mas ela disse que o buraco do meu nariz já era assimétrico”, relata Denize.

A evolução da cicatrização nunca melhorou e ela ainda mantém as marcas dos pontos nas laterais nasais. Por vergonha e tristeza, ela evitou encontros com a família.

“No começo, eu não respirava direito. Foi muito dolorido, chorei muito, me incomodava porque as pessoas olhavam e perguntavam o que tinha acontecido com meu nariz. Faz um ano e um mês que isso aconteceu. Eu passei todo esse período sem sair de casa, sem ver minha família porque eles já me conhecem e notariam a diferença.”

Foi preciso mais de um ano, mas Denize finalmente conseguiu se aceitar e parar de sentir culpa. “Agora, estou tentando seguir a minha vida mesmo com essa cicatriz. Não posso mais parar minha vida por conta disso.”

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