Fonte: Noticia ao Minuto
Enquanto se multiplicam relatos de alta tensão e risco de rebeliões em prisões do Brasil, o governo federal promove uma ofensiva contra a soltura de presos devido à pandemia do novo coronavírus.
Na sexta passada (3), o diretor-geral do Depen (Departamento Penitenciário Nacional), Fabiano Bordignon, pediu a autoridades do país que lhe fossem enviados relatos de crimes graves e violentos cometidos por quem saiu da cadeia na crise.
A mensagem por aplicativo pedia que fosse utilizado o contato privado para os envios, que poderiam ser notícias de jornal ou de outros meios.
A requisição veio três dias depois de o chefe de Bordignon, o ministro Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública), passar um vexame.
Na terça (31), Moro alertou sobre o risco da soltura usando um caso que nada a tinha a ver com ela, de uma pessoa presa com armas e drogas no Rio Grande do Sul que não havia sido libertada.
No dia seguinte, desculpou-se pelo erro, e a determinação no Depen para adensar a narrativa do perigo à sociedade foi distribuída internamente.
A decisão de liberar alguns presos por conta da pandemia de coronavírus criou tensão entre o Governo Federal e o do Estados de São Paulo
A questão opõe Moro ao CNJ (Conselho Nacional de Justiça), que recomenda o habeas corpus temporário a pessoas que fazem parte de grupos de risco da Covid-19, como portadores do HIV e idosos.
A recomendação, de 17 de março, é explícita ao vetar benefício a autores de crimes graves ou que representem ameaça à sociedade.
Segundo o Depen, já foram soltas temporariamente 32 mil pessoas no país desde o começo da crise. Há 752 mil detentos no país.
Em outra mensagem circulada na sexta, que virou ofício formal no domingo (5), o órgão requisita que as inteligências estaduais informem detalhes sobre a localização e o monitoramento dos soltos. Segundo a mensagem, muitos dos beneficiados seriam integrantes de organizações criminosas.
A medida gerou reclamações entre algumas secretarias de Administração Penitenciária, que viram uma invasão de competência no pedido.
A reportagem procurou o Depen e questionou o órgão sobre os dois pedidos. Recebeu em resposta apenas uma nota descrevendo seu papel como gestor do sistema prisional nacional como um todo.
“O Depen solicita informações às administrações penitenciárias com frequência, objetivando o melhor direcionamento de políticas públicas de atenção à presos e egressos do sistema prisional brasileiro”, disse o texto.
Se a ideia de monitorar quem sai parece até óbvia, não houve comentário sobre a questão do recolhimento de notícias de casos escabrosos atribuídos a favorecidos pelo “saidão do coronavírus”, como a medida é apelidada por seus detratores.
Em São Paulo, que tem a maior população carcerária, com 233 mil detentos, a Defensoria Pública da União e a do estado requisitaram no dia 20 de março ao Tribunal de Justiça um habeas corpus provisório nas linhas preconizadas pelo CNJ.
A situação é particularmente complexa no estado, do ponto de vista político.
O governo João Doria (PSDB) está em conflito aberto com a gestão Jair Bolsonaro, mas internamente a orientação é de alinhamento com Moro, para evitar uma frente nova de atritos –de quebra, o ministro é daqueles que discorda do chefe sobre questões como o isolamento social.
Logo no começo da emergência sanitária, o estado foi um dos primeiros a suspender visitas externas aos detentos, o que gerou um dia de fugas e revoltas em unidades com regime semiaberto.
Esse tipo de restrição hoje vale para o país inteiro, e segundo o Depen não há casos de coronavírus registrados até aqui no sistema.
O semiaberto, que registra 125,6 mil presos, preocupa especialmente pelo fato de que seus internos podem sair para trabalhar –se estiverem ocupados em setores essenciais durante o isolamento social.
O problema, óbvio, é o limite da pressão nas cadeias. Entre grupos de agentes penitenciários da região Sul e Norte, por exemplo, circulam mensagens alertando para rebeliões coordenadas no feriado da Páscoa.
Em São Paulo, centro nervoso do sistema e berço do PCC (Primeiro Comando da Capital), os órgãos de segurança estão de prontidão, mas não há previsão de reforço no policiamento.
A Polícia Militar local já teve mais de 600 casos de coronavírus na tropa, e está fazendo rodízios visando deixar pelo menos 1/3 do contingente de sobreaviso em casa, sem prejuízo às patrulhas regulares.
O posicionamento do Depen se alinha à ideologia trazida por Moro de seu tempo de juiz símbolo da Operação Lava Jato ao ministério, que opõe punitivismo penal a garantismo –visto como leniência com o crime.
A posição tem amplo apoio popular, como o fato de Moro ser o ministro mais bem avaliado do governo segundo o Datafolha prova.
Mas isso escamoteia dois fatos. Primeiro, que o Estado é o responsável pela integridade física dos seus presos. Segundo, que os riscos da pandemia são maiores lá dentro.
No pedido de habeas corpus das defensorias em São Paulo, por exemplo, são anexados dados e fotos acerca das condições insalubres das cadeias locais.
Entre 2014 e 2019, foram feitas 130 inspeções nas 176 unidades prisionais.
Elas identificaram superlotação em 69% delas, falta de água em 70% e falta de acesso a sabonete em 69%, isso para ficar em itens relacionados ao risco de propagação do coronavírus.
A situação se repete pelo Brasil. Segundo nota técnica emitida pelo Depen no domingo (5), 30 mil detentos do país são portadores de condições de risco em caso de desenvolver a Covid-19. Os dados se referem a junho de 2019.
A incidência de HIV e Aids nas cadeias é o dobro daquela registrada na população em geral, com 7.742 presos infectados. Tuberculosos somam 8.638 casos.
Além disso, há déficit de médicos: são 0,99 por mil presos, ante 1,86 por mil habitantes na população em geral.
A diferença é mitigada na enfermaria. Há mais enfermeiros por mil habitantes nas prisões (1,83) do que no país (1,51), e o mesmo índice de técnicos em enfermagem (3,24 ante 3,28).
A cobertura, contudo, é desigual. Estados como Amapá e Sergipe não possuem atenção de saúde penal, enquanto o Distrito Federal cobre 95% de sua população carcerária.
Das 1.412 prisões do país, 856 têm consultório médico e 785, enfermarias. Estudo do Conselho Nacional do Ministério Público apontou que 31% delas não têm condições de fazer atendimentos.
A questão é mundial. Em países como o Irã, que vive uma versão apocalíptica da pandemia, sem controle, toda a população presa foi liberada.
Nos Estados Unidos, país que tem um padrão de alto encarceramento que serve de modelo ao Brasil, o procurador-geral de Justiça pediu na sexta que todos os vulneráveis de presídios federais sejam postos em prisão domiciliar.